Quando
a máscara cai
O vale estava intacto. As árvores
cresciam até aos céus. Os campos sem culturas encontravam-se verdes porque
ainda era inverno. As ervas daninhas cresciam sem que houvesse alguém que as
escolhesse. A ribeira levava água límpida que sussurrava leito fora.
Hieronimo todos os dias passava
por ali para descansar. Sentia-se desanimado, sem objectivos, sem alegria.
Por vezes cansado, sentava-se a
ver as estrelas passarem e lembrava-se do mundo que girava. Tudo parecia
fantástico, mas irritante. Sabia que as máscaras que trazia se estavam a
desfazer gradualmente. Tinha percorrido toda a terra, sabia que tinha nascido
livre, apenas tinha uma ideia, alimentar-se e proteger-se do frio, por isso
procurava a pele dos animais para se cobrir e alimentava-se do que encontrara.
Depois de se consolar, sentia-se feliz.
Mas a insatisfação percorria-lhe
nas veias.
Pensou em reproduzir-se e
fabricou outros meios para subsistir. Inventara a forma de matar animais,
tirando-lhe a carne para se alimentar e a pele para se vestir; aprendera a fiar
a lã, a fazer roupas mais leves e mais quentes. Pensou em vender todos os
excedentes. Aprendera a arte de se defender dos intrusos e dos animais que por
ele passavam. Foi crescendo, crescendo... Tornou-se rei do seu próprio império.
Passou a explorar os submissos e os indefesos, fazendo-lhes promessas de
protecção e de alimento.
Construiu castelos, fortalezas,
abadias, casas, arranha-céus, monstruosidades.
Correu o mundo por terra e por
mar, não satisfeito, explorou os céus com artefactos que o lavariam a percorrer
grandes distâncias em poucas horas.
Passou a andar apressado sem
tempo para nada, sem tempo para se sentar e para reflectir.
Não satisfeito melhorou os modos
de vida. Vestiu peças raras, guarnecidas a pedras preciosas, mostrando a sua
imponência. Asfixiara-se em matéria e mais matéria, ciente de que quanto mais
tivesse, melhor se sentiria. Mas, a insatisfação não o abandonava. Corria de um
lado para o outro à procura de invenções para se consolar, para depois as
construir e as comercializar.
Sentia-se preso numa teia que não
tinha fim. A sua liberdade escapara-se.
O tempo passava. Os anos surgiam.
As sementes deixadas tinham-se
transformado em lodo.
Reparou no seu egoísmo, uma
maldição que teria de suportar até ao fim dos seus dias. Esquecendo-se da
humanidade que ficou retida nos escombros da memória.
Das últimas vezes que caminhara
pelo vale, sentia que cada dia que passava tinha menos forças. No entanto,
fazia questão de fazer aquele trajecto até conseguir.
Num fim de tarde, depois de ter
feito um lanche reforçado, saiu do seu aconchego e foi em direcção ao vale, sem
informar quem quer que fosse. Queria estar só. Caminhou, caminhou e a
determinada altura, encostou-se a uma árvore onde se ouvia a água a correr, na
sua frente havia um campo com ervas daninhas, agachou-se e acabou por se
sentar. Deixando-se levar pelo ruído da água, passou pelas brasas. Adormeceu.
Hieronimo, desaconchegado como
estava, sentiu frio, reparou que já estava ali há muito tempo porque o sol
estava a nascer; procurou mexer-se e sentiu dificuldades. Esticou os braços e
as pernas, exercitou os músculos dormentes.
Havia esquecido das horas que ali
estivera. Não tinha noção se fora dias se algumas horas, o que sabia é que se
sentia infeliz e sabia que brevemente tudo lhe escaparia; mas antes, vários
pensamentos lhe passaram. Sentia que a máscara que trazia consigo há muitos e
muitos anos já estava a cair.
As horas que passara naquele vale,
permitiu-lhe ver o que nunca conseguira ver.
Tinha sido construtor de tudo
quanto se lembrava, levara milhares de anos a progredir, mas, afinal tudo o que
tinha semeado fora abandonado: desprezo, ódio e destruição. Percebia que vivia
rodeado de lodo e de imundice. Queria pedir perdão pelos maus exemplos que
deixara. Esperava que o Homem que viesse depois, olhasse e verificasse na
imundice que lhe tinham deixado e melhorasse a sua conduta para poder viver em
tranquilidade, em simplicidade e admiração.
Reconhecera que este abandono a
que se tinha entregue nestes últimos anos, tinha-lhe permitido verificar o quão
caro se tinha tornado ao mundo desinteressado; percebera tarde de mais o que
tinha construído, daí a sua angústia, o seu desânimo. Tinha proporcionado
bem-estar, saber, dilatara horizontes, mas havia uma coisa que não conseguira
transmitir, o conceito do bem para todos. O mal tinha-se sobreposto e
aniquilado o amor entre as pessoas. O escárnio, o espezinhamento abafara o bem.
O mundo sem bem, promovia discórdia e ultrajado produzia miséria.
A miséria do pensamento levara o
homem aos últimos limites. Criara monstros sem princípios, sem exemplos,
mostrando as escórias por onde se moveram e por onde caminham, alastrando o
vómito das vísceras envenenadas com ódio e com acidez no mundo indiferente.
Hieronimo, voltou a tentar-se
mexer, ainda sentia os pés; com os olhos fixos no horizonte onde o sol raiva
brilhante, pedia clemência pelos danos causados. Percebia que aquele sol lhe
tinha aparecido como prova de um amor extra terreno, porque reconhecera que o
motivo pelo qual errara, tinha sido preludio de que quando chegara à terra,
teria que aprender a defender-se e só então depois de errar conseguiria
sublevar-se para atingir a sua plenitude.
Depois de sentir o sol a aquecer
o seu corpo, pensou regressar ao seu lar, mas ao tentar mexer-se verificou que
alguma coisa estranha tinha acontecido.
Procurou levantar-se, mas as
forças não o sustiveram e caiu para o lado onde cresciam as ervas daninhas.
Um cão abandonado passara por
ali, ao ver um corpo estranho cheirou-o e ladrou, não vendo reacção, voltou a
ladrar, mas ninguém apareceu. Correndo como louco, dirigiu-se até à povoação
mais próxima, ladrou, mas o silêncio era profundo. Uivava, uivava, mas ninguém
surgiu. Cansado, voltou ao lugar onde encontrara o corpo estranho, ali chegado
farejou e nada encontrou, voltou a ladrar num uivo desesperado, nem uma viva
alma nem um animal. Ali ficou sentado à espera de alguém.
Cidália Rodrigues
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