domingo, 8 de maio de 2016

Quando a máscara cai


Quando a máscara cai


O vale estava intacto. As árvores cresciam até aos céus. Os campos sem culturas encontravam-se verdes porque ainda era inverno. As ervas daninhas cresciam sem que houvesse alguém que as escolhesse. A ribeira levava água límpida que sussurrava leito fora.

Hieronimo todos os dias passava por ali para descansar. Sentia-se desanimado, sem objectivos, sem alegria.

Por vezes cansado, sentava-se a ver as estrelas passarem e lembrava-se do mundo que girava. Tudo parecia fantástico, mas irritante. Sabia que as máscaras que trazia se estavam a desfazer gradualmente. Tinha percorrido toda a terra, sabia que tinha nascido livre, apenas tinha uma ideia, alimentar-se e proteger-se do frio, por isso procurava a pele dos animais para se cobrir e alimentava-se do que encontrara. Depois de se consolar, sentia-se feliz.

Mas a insatisfação percorria-lhe nas veias.

Pensou em reproduzir-se e fabricou outros meios para subsistir. Inventara a forma de matar animais, tirando-lhe a carne para se alimentar e a pele para se vestir; aprendera a fiar a lã, a fazer roupas mais leves e mais quentes. Pensou em vender todos os excedentes. Aprendera a arte de se defender dos intrusos e dos animais que por ele passavam. Foi crescendo, crescendo... Tornou-se rei do seu próprio império. Passou a explorar os submissos e os indefesos, fazendo-lhes promessas de protecção e de alimento.

Construiu castelos, fortalezas, abadias, casas, arranha-céus, monstruosidades.

Correu o mundo por terra e por mar, não satisfeito, explorou os céus com artefactos que o lavariam a percorrer grandes distâncias em poucas horas.

Passou a andar apressado sem tempo para nada, sem tempo para se sentar e para reflectir.

Não satisfeito melhorou os modos de vida. Vestiu peças raras, guarnecidas a pedras preciosas, mostrando a sua imponência. Asfixiara-se em matéria e mais matéria, ciente de que quanto mais tivesse, melhor se sentiria. Mas, a insatisfação não o abandonava. Corria de um lado para o outro à procura de invenções para se consolar, para depois as construir e as comercializar.

Sentia-se preso numa teia que não tinha fim. A sua liberdade escapara-se.

O tempo passava. Os anos surgiam.

As sementes deixadas tinham-se transformado em lodo.

Reparou no seu egoísmo, uma maldição que teria de suportar até ao fim dos seus dias. Esquecendo-se da humanidade que ficou retida nos escombros da memória.

Das últimas vezes que caminhara pelo vale, sentia que cada dia que passava tinha menos forças. No entanto, fazia questão de fazer aquele trajecto até conseguir.

Num fim de tarde, depois de ter feito um lanche reforçado, saiu do seu aconchego e foi em direcção ao vale, sem informar quem quer que fosse. Queria estar só. Caminhou, caminhou e a determinada altura, encostou-se a uma árvore onde se ouvia a água a correr, na sua frente havia um campo com ervas daninhas, agachou-se e acabou por se sentar. Deixando-se levar pelo ruído da água, passou pelas brasas. Adormeceu.

Hieronimo, desaconchegado como estava, sentiu frio, reparou que já estava ali há muito tempo porque o sol estava a nascer; procurou mexer-se e sentiu dificuldades. Esticou os braços e as pernas, exercitou os músculos dormentes.

Havia esquecido das horas que ali estivera. Não tinha noção se fora dias se algumas horas, o que sabia é que se sentia infeliz e sabia que brevemente tudo lhe escaparia; mas antes, vários pensamentos lhe passaram. Sentia que a máscara que trazia consigo há muitos e muitos anos já estava a cair.

 As horas que passara naquele vale, permitiu-lhe ver o que nunca conseguira ver.

Tinha sido construtor de tudo quanto se lembrava, levara milhares de anos a progredir, mas, afinal tudo o que tinha semeado fora abandonado: desprezo, ódio e destruição. Percebia que vivia rodeado de lodo e de imundice. Queria pedir perdão pelos maus exemplos que deixara. Esperava que o Homem que viesse depois, olhasse e verificasse na imundice que lhe tinham deixado e melhorasse a sua conduta para poder viver em tranquilidade, em simplicidade e admiração.

Reconhecera que este abandono a que se tinha entregue nestes últimos anos, tinha-lhe permitido verificar o quão caro se tinha tornado ao mundo desinteressado; percebera tarde de mais o que tinha construído, daí a sua angústia, o seu desânimo. Tinha proporcionado bem-estar, saber, dilatara horizontes, mas havia uma coisa que não conseguira transmitir, o conceito do bem para todos. O mal tinha-se sobreposto e aniquilado o amor entre as pessoas. O escárnio, o espezinhamento abafara o bem. O mundo sem bem, promovia discórdia e ultrajado produzia miséria.

A miséria do pensamento levara o homem aos últimos limites. Criara monstros sem princípios, sem exemplos, mostrando as escórias por onde se moveram e por onde caminham, alastrando o vómito das vísceras envenenadas com ódio e com acidez no mundo indiferente.

Hieronimo, voltou a tentar-se mexer, ainda sentia os pés; com os olhos fixos no horizonte onde o sol raiva brilhante, pedia clemência pelos danos causados. Percebia que aquele sol lhe tinha aparecido como prova de um amor extra terreno, porque reconhecera que o motivo pelo qual errara, tinha sido preludio de que quando chegara à terra, teria que aprender a defender-se e só então depois de errar conseguiria sublevar-se para atingir a sua plenitude.

Depois de sentir o sol a aquecer o seu corpo, pensou regressar ao seu lar, mas ao tentar mexer-se verificou que alguma coisa estranha tinha acontecido.


Procurou levantar-se, mas as forças não o sustiveram e caiu para o lado onde cresciam as ervas daninhas.

Um cão abandonado passara por ali, ao ver um corpo estranho cheirou-o e ladrou, não vendo reacção, voltou a ladrar, mas ninguém apareceu. Correndo como louco, dirigiu-se até à povoação mais próxima, ladrou, mas o silêncio era profundo. Uivava, uivava, mas ninguém surgiu. Cansado, voltou ao lugar onde encontrara o corpo estranho, ali chegado farejou e nada encontrou, voltou a ladrar num uivo desesperado, nem uma viva alma nem um animal. Ali ficou sentado à espera de alguém.


Cidália Rodrigues

Sem comentários:

Enviar um comentário